quinta-feira, julho 22, 2004


Os poemas abaixo foram distribuídos na intervenção urbana do dia 29/06/2004, ligada ao Forum Cultural Mundial, no metrô em São Paulo e nas ruas próximas à estação da Luz:




É só o outro que canto
E canto o que não existe.
De fora, nada é certo:
Sol, manhãs
A primeira chuva morna
Estalos de dedos, insuspeitos girassóis.
Parcos reflexos de vultos distorcidos.

A única certeza: minha voz.

Stella Ramos

É de pés, não de pedras
O caminho que leva à torre.
Perto do céu, o peso aquieta
a montanha é feita apenas da luz de outono.
No alto da torre, o corpo cabe em dois olhos:
Suporte cálido, o braço que sustenta, sereno
O sonho do vôo.

Stella Ramos

Memória

Escolhi para hoje o tempo de teu riso solto,
Quase herege, sigiloso.
Com ele me alimentei de flores e bênçãos,
Atrás de cinco luas singrei a rua
Prateada e branca, sacerdotisa.

No retorno temporão do sol teu sapato já não servia.
Escolhi então teu tempo de nuvens,
Certo como faca.

Voltei à casa despida do fino linho,
Estrelas me enfeitando os olhos
Pés nus e mãos vazias.
Nas palmas abertas teu riso longe
Falso, fraco, exangüe:
Findo o tempo da feitiçaria.

Stella Ramos

Finda a rua
Cresce do sol a sombra púrpura:
Tua voz feita em miragem.
(não sei ao certo se você existe).
Basta a tua sombra, teu canto solar
Para que um vale se abra
À frente dos meus olhos em brasa.

Stella Ramos

Pouco há de mim nos altos ideiais
quase nada no diploma de doutor.
Do enorme gramado em muros
Pouco se vê do que sou
Senão em alguma sombra pálida,
no cão ao sol. Pimentas
pitangas e canela
hortelã rasteiro, sobrancelhas apenas.
Vivo somente na terra úmida
Meus olhos fechados,
O toque frio da pedra, infinita.

Saltar em azuis para o
abismo, às vezes para Chagall.
Em teu suspiro morno, cambaleio de pernas,
Em cada lágrima fotográfica.

Stella Ramos

Dançar é como um canto
que risca em gestos delicados
doces vozes no ar.
Como o corpo que cria, suspenso
o indefinível desenho do tempo.

Stella Ramos

Pique-Bandeira

Me distraio no horizonte súbito,
Vale aberto, rio de carros sob o viaduto.
Árvores à margem da estação Sumaré,
Falsos vagalumes incensados pelo vento.

Sol: desenho em nuvens aos meus olhos fechados.
Como o rio, as nuvens também são água,
Abertas em caminho cristalino,
Soltas no céu
Como em meus olhos capturados.

Stella Ramos

A janela do meu bairro
Se abre num céu limpo,
De azul afetivo.
Mesmo quando as estrelas
Alheias
Cobrem-se, desencantadas, com véus
Seu nome ecoa em brilho
Cordeorítmico, pulsante enlace:
- Pompéia -
e as casinhas obedecem, em silêncio
ao seu sono de interior.


Stella Ramos

Quando se olha do alto
todo o mais é menos.

Stella Ramos





Sempre fiz cara feia
a poemas de Coca-Cola.
A poesia, afinal,
Não foi feita pra ser universal?
Hoje bebo Coca-Cola em letras
uma, duas, três vezes até o final.
Datada sou eu, meu corpo que finda.
Na estranha metáfora o espelho contrário:
sem a alma líquida que a preenche
a lata, corpo da tal Coca-Cola
plena em seu alumínio reluzente
durará por eternidades.

Stella Ramos

Quando ouço Maria Bethânia
é como se uma lâmina
muito afiada
me cortasse rente a pele
e tirasse minha casca
e soprasse meus caminhos de água
movesse os rios que
correm dentro de mim.
Quando ela diz de amor
essa água em mim
verte, cascata,
como quando leio um guardanapo
velho, amassado,
que guarda do tempo a declaração mais bonita, bêbada
que um dia alguém que me lê escreveu.
Quando essa mulher não entende
e faz cara de "que importa?"
não importa, não importa
o que vale nessa vida, nêgo,
é o que toca.

Lemuel Cintra

hermético
sintético
poético?
econômico
supérfluo
onírico
monótono
lacônico
hipérbato
estou
assim

Lemuel Cintra

ardil

se corre, atrasa
adiantando, assusta
vontade voa
ou voa longe
demais
me diga se longe não parece sempre demais?
(…)
e se quer perto e já
felicidade urgente
fundo da rede, sombra
mundo lá fora
frio agora
calor aqui dentro
quem faz as regras do tempo?

Selvagem é bom de vez em quando, como lagosta flambada.
Mas meu feijão com arroz é amorzinho, não tem jeito.

Lemuel Cintra

Faça o que cabe a você.
Faça o que não cabe em você!
Faça que não acabe em você!

Ins. Pirado








Tiros no escuro e pássaros nas mãos.

Chico Rivers


Sozinho,
Não sinto o vento
Mudar de direção.
Preciso do fósforo aceso,
Da chama que em minha mão seguro
(chama que protejo).
Como (delicada)
Vejo tremer,
Balançar, antes de queimar
A escuridão.

Chico Rivers